Em sua abordagem ao meu comentário (“Comentando o Comentário”) o Sr. Clacir procura esclarecer as bases de seu raciocínio. E é exatamente aí onde se encontra o ruído de comunicação. Por isto, antes de aprofundar os argumentos sobre a virgindade perpétua da Toda Santa Mãe de Deus, necessário se faz uma análise das nossas bases de abordagem.
AS BASES DA ABORDAGEM DO SR. CLACIR
Uma primeira questão a ser revista é o conceito de tradição. No mundo Protestante se faz uma dicotomia entre Santa Tradição e Sagradas Escrituras. Neste conceito, em geral, a Tradição não passa de “coisa dos homens”, e por isto passível de erros. As Escrituras, ao contrário, são infalíveis, porque são inspiradas pelo Espírito Santo; e via de regra, segundo esta concepção, a Tradição se encontra em oposição às Santas Escrituras. Este tipo de raciocínio é desenvolvido porque comumente se ignora o que vem a ser a Santa Tradição, identificando-a como apenas uma elucubração pautada em digressões de uma mentalidade mítica, ou como lendas habilmente engendradas por um clero inescrupuloso, ávido por manter o povo na ignorância a fim de perpetuar o seu poder (do clero) sobre as massas. Logo mais farei uma consideração sobre isto.
Como veículo “libertação” desta realidade “obscurantista” surge um conceito confuso e contraditório como o é a “Sola Scriptura”.
Confuso, porque em geral se confunde uma compreensão pessoal com aquilo que a Bíblia diz, e contraditório porque cada Denominação Protestante interpreta a Bíblia pela hermenêutica de uma confissão de fé, ou seja, uma tradição particular. E é por este entendimento (tradição hermenêutica) que cada uma pauta suas compreensões dos temas teológicos.
Como fruto dessa confusão e contradição conceitual, o movimento que procurava restaurar a fé primitiva no Ocidente, tendo a Bíblia como a bússola, se vê fragmentado desde o céu nascedouro com os seus líderes discordando entre si em questões como lista do Cânon Sagrado, natureza dos sacramentos, forma de governo, liturgia e etc.; sendo esta fragmentação aprofundada na medida em que a história avançava. Hoje são mais de 80.000 denominações protestantes, todas elas afirmando ser sua teologia a legítima expressão do que a Bíblia diz.
Isto é muito estranho, porque o Espírito que inspirou as Santas Escrituras (conferindo uma harmonia entre tantos textos e autores diversos e distantes um dos outros às vezes em séculos) não consegue produzir uma interpretação igualmente harmoniosa, ou seja: Ele inspira a redação, mas não consegue inspirar a compreensão destes textos, contradizendo o que se revela no ensino apostólico, segundo a Bíblia: (Mt. 13:11; 1 Tm 3:15, Ef. 4:4-6). Nesta experiência, a “Sola Scriptura” se apresenta muito mais como uma nova Babel do que um outro Pentecostes. Parafraseando Tiago, de uma mesma fonte não pode jorrar tipos diferente de água (Tg 3:11,12).
Alguns, tentando encobrir este triste realidade, procuram classificar tal fragmentação na dimensão da diversidade natural da Igreja.
A diversidade da qual falam as Escrituras não pode ser confundida com fragmentação. Os Textos Sagrados modelam a diversidade denominando a Igreja de Corpo de Cristo; portanto, se utilizando da representação iconográfica do corpo humano, o qual consiste de uma diversidade de membros formando uma unidade orgânica na qual todos os membros subsistem nesta unidade e em função dela, e não como unidades isoladas e auto-existentes por si mesmas. Não podemos confundir uma colcha de retalhos com um tecido único que foi tingido por cores diversas.
Coexistindo com esta fragmentação externa existem, numa mesma denominação, fragmentações internas. Isto porque a maioria dos pastores e líderes de cada Denominação - além da Confissão de Fé das Denominações as quais pertencem, têm, individualmente, a sua maneira particular de enxergar determinado ensino bíblico. Quando esta consciência individual se conflita com a da Denominação, então, gera-se um cisma, e surge mais uma Denominação que crer na infalível Palavra de Deus, rasgando mais ainda o retalho da colcha. Portanto, as Denominações, além de cada uma já ser, em si mesma, um fragmento da Reforma em nome da “Sola Scriptura”, torna-se internamente fragmentária, em nome da “Sola Scriptura”. E assim, cada qual acusa a outra de “heresia” ou melhor falando, de ser “anti-bíblica”.
Tomemos, por exemplo, a própria Igreja Adventista no cenário das Igrejas da Reforma: Os Adventistas têm o mesmo princípio de todos os outros grupos Protestantes (o da “Sola Scriptura”), e além das cisões internas, fruto das divergências hermenêuticas, o Adventismo sofre a rejeição das denominações mais antigas, que o acusam de distorção das Escrituras por ensinar a guarda do Sábado. Por outro lado, os Adventistas acusam as outras denominações de desobediência e desonra do que a Bíblia ensina. Mas todos se julgam fiéis a Bíblia.
Isto acontece porque no mundo Protestante se confunde “o que eu interpreto que a Bíblia diz” com o que está registrado no Texto Sagrado. E é com esta confusão conceitual que o Sr. Clacir argumenta. Se não, vejamos:
SOBRE O QUE “A BÍBLIA DIZ”:
O artigo do Sr. Clacir, pautado em inferências bíblicas construídas a partir do texto de Mateus 1:25 afirma que a virgindade da Santa Mãe de Deus encerrou-se com o nascimento do seu Filho, sustentando categoricamente que este é o ensino da Bíblia. O desconcertante para esta suposição, é que os pais da Reforma e da “Sola Scriptura” (Lutero, Calvino e Zuwinglio), analisando o mesmo texto chegam a uma compreensão diferente da dele, tendo a Tradição como certíssima em seu ensino.
Eis o comentário de Calvino (o mais radical dos Reformadores) sobre este texto de Mateus 1:25
“And knew her not. This passage afforded the pretext for great disturbances, which were introduced into the Church, at a former period, by Helvidius. The inference he drew from it was, that Mary remained a virgin no longer than till her first birth, and that afterwards she had other children by her husband. Jerome, on the other hand, earnestly and copiously defended Mary’s perpetual virginity. Let us rest satisfied with this, that no just and well-grounded inference can be drawn from these words of the Evangelist, as to what took place after the birth of Christ. He is called first-born; but it is for the sole purpose of informing us that he was born of a virgin. It is said that Joseph knew her not till she had brought forth her first-born son: but this is limited to that very time. What took place afterwards, the historian does not inform us. Such is well known to have been the practice of the inspired writers. Certainly, no man will ever raise a question on this subject, except from curiosity; and no man will obstinately keep up the argument, except from an extreme fondness for disputation” (Harmony of Gospel, Part I).
Assim, o grande sistematizador da Reforma, não só reafirma a crença na virgindade perpétua de Maria, como classifica de perturbadores da Igreja os que querem inferir, desta passagem, que Maria teve outros filhos com José. Calvino entende que a Tradição tem copiosos argumentos para se crer na virgindade perpétua de Maria e, que esta expressão “e não a conheceu até (kai. ouvk evgi,nwsken auvth.n e[wj)” utilizada por São Mateus, nada mais objetiva senão afirmar o nascimento virginal de Cristo, não podendo ser utilizada para se especular o que aconteceu depois, classificando estas especulações como nocivas, posto que são movidas pelo espírito de contenda. Calvino admite que esta é uma crença consensual na igreja e que deve ser preservada.
Veja a que situação nos leva a “Sola Scriptura”: usando o mesmo instrumento, a Bíblia, Calvino afirma o que o Sr. Clacir nega. E até desqualifica a posição por ele assumida.
Quem está com a razão?
O que realmente a Bíblia diz?
Como podemos saber que a interpretação do Sr. Clacir é o que a Bíblia realmente diz e a dos Reformadores, não?
Portanto, melhor seria o Sr. Clacir dizer que sua crença está pautada numa compreensão particular das Escrituras do que classificá-la como sendo aquilo que a Bíblia diz, dando caráter autoritativo ao seu posicionamento.
Embora, ainda não seja o momento para entrar no mérito dos textos bíblicos, quero tecer uma pequena apreciação da expressão contida em Mateus: 1:25.
É fato que “até” tem o sentido primeiro de delimitação de tempo. Porém, usando uma regra protestante básica de hermenêutica (a de comparar Escritura com Escritura), vemos que ela também pode ser usada como ênfase a uma realidade que se queira destacar, mas não necessariamente delimitá-la temporalmente. Este é o caso de Mat. 28:28, “e eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século ”. Com o emprego do termo “até, o Evangelista mostra querer enfatizar que a ausência física de Cristo não implica em uma ausência de fato, real. Se aplicarmos o raciocínio do Sr. Clacir para interpretar Mat. 1:25, então chegaremos à conclusão de que depois da consumação dos séculos, Cristo não estará mais conosco. Isto seria um absurdo. Portanto, Mateus, tanto no início como no fim do seu Evangelho, usa o termo “até (e[wj)” para dar ênfase a uma realidade, e não para delimitá-la[1]. Ele queria dar ênfase ao fato de que em Maria cumpria-se a profecia da Virgem Parturiente de Isaías 7:14. E esta é a interpretação da Tradição, com a qual todos os Pais da Reforma (os mesmos que criaram a “Sola Scriptura”), concordam.
SOBRE A SANTA TRADIÇÃO E AS SAGRADAS ESCRITURAS
A palavra "Tradição" (do grego "paradossei") aparece diversas vezes nos Textos Sagrados que compõem o Novo Testamento, e literalmente aponta para um conjunto de ensinamentos que são preservados por um grupo e transmitidos sucessivamente de geração em geração. Estes tesouros devem ser guardados por fiéis depositários (do grego "paratheken", aquilo que é confiado aos cuidados de alguém). O escriba que é versado no reino dos Céus (teólogo) deste tesouro “tira coisas novas e velhas” (Mt. 13: 52).
Ao citar o texto de Mat. 15: 26 como condenatório da Tradição, se faz violência ao ensino bíblico sobre o tema, pois, conforme o ensino de Jesus, devemos distinguir entre tradições e tradições (as coisas velhas e as novas); expressão esta que no Evangelho de Mateus se refere a uma distinção entre as tradições antigas:“ouviste o que foi dito aos antigos” (as coisas velhas) e aos novos ensinamentos de Cristo, “eu, porém, vos digo... (coisas novas). Assim, é que Paulo nos ensina a guardar as tradições que vem de Cristo por meio dos Apóstolos:
“Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa” (2 Tess. 2:15).
Ou seja, a Igreja deve preservar tanto as tradições orais quanto as escritas, as quais, juntas, formam a Santa Tradição. E, falando a Timóteo, diz:
“E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros... Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda boa obra” (2 Tm. 2:2; 3:16,17).
Timóteo deve zelar e transmitir as tradições orais, cuidando para que elas se perpetuem, ao mesmo tempo em que se alimenta das Santas Escrituras.
Quando Cristo enviou seus Apóstolos ao mundo não lhes ordenou que eles escrevessem uma Bíblia, mas, sim, que transmitissem (tradição) a todos os povos os seus ensinamentos (Mt 28: 19). A compilação deste Tesouro em um documento textual (Bíblia) é uma ferramenta eficaz na transmissão (tradição) desses ensinamentos. A Igreja Ortodoxa não vê distinção entre Tradição (Depósito da Fé) e Escritura. Tudo é Tradição. As Santas Escrituras constituem as peças mais valiosas do grande tesouro deixado por Cristo para a Sua Igreja (Depósito da Fé). Quando o alguém afirma que a Bíblia é maior do que a Igreja, assim o faz porque possui um conceito limitado ou equivocado sobre o que vem ser a Igreja. Esta concepção tem em sua base a idéia de que a Igreja sofreu uma espécie de descontinuidade histórica, estando hoje, e desde cedo, apartada dos Apóstolos e da Igreja Primitiva. Isto sim, contraria frontalmente todo o ensino das Santas Escrituras. A Igreja, em comunhão e guiada pelo Espírito da Verdade (João 16:13,14) não somente gerou a Bíblia, como também, pelo mesmo Espírito a preservou de erros em sua transmissão (Tradição) e por meio do mesmo Espírito em comunhão com Ele, interpreta corretamente a vontade de Deus (Santa Tradição):
“Porquanto ouvimos que alguns que saíram dentre nós vos perturbaram com palavras e transtornaram a vossa alma (não lhes tendo nós dado mandamento), pareceu-nos bem, reunidos concordemente, eleger alguns varões e enviá-los com os nossos amados Barnabé e Paulo, homens que já expuseram a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Enviamos, portanto, Judas e Silas, os quais de boca vos anunciarão também o mesmo. Na verdade, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor mais encargo algum, senão estas coisas necessárias...”. Atos 15:24-28
Vemos neste texto a Igreja definindo matéria de prática da fé por meio de um Concílio, e vendo em seu consenso a manifestação da vontade do Espírito Santo. E esta prática, iniciada pelos Apóstolos se perpetuou na História (Concílios Ecumênicos ou Locais) para dirimir questões de fé e prática (cânones). E, entre estes cânones consta a definição dos livros que são sagrados (Bíblia).
Antes de se tornar um livro (tradição documental), o testemunho da Revelação é transmitido oralmente (tradição oral). A Bíblia é, portanto, fruto do labor da Igreja, do seu consenso, guiada pelo Espírito Santo.
O Cânon não tem a mesma história das Tábuas da Lei. Ele não desceu dos céus, escrito pelo dedo de Deus. Nem tampouco é auto-existente, como o É o Verbo de Deus. A Igreja, por meio dos seus concílios, definiu que livros eram e os que não eram sagrados, usando a tradição apostólica preservada pelos bispos como critério de aferição (cânon). O Sr. Clacir até lançou mão de um deles para julgar os apócrifos: o critério da apostolicidade. Pois, bem, este critério não está na Bíblia, mas foi estabelecido pela Igreja. Outro critério usado para avaliar um livro, era a ortodoxia do seu conteúdo, ou seja, se estava consoante ou não com a Tradição ensinada e preservada pelos Bispos. Portanto, para definir o Cânon, a Igreja julgou as Escrituras (o termo “cânon” significa “vara de medir”). As Escrituras que temos, hoje são tidas por Sagradas porque a Igreja disse que Elas são sagradas.
Ou seja, foi a Tradição que gerou a Bíblia. Ora, se os Concílios não foram guiados pelo Espírito Santo, então, o cânon que nós temos tem uma boa probabilidade de conter erros e equívocos, o que faria cair por terra a tese da “Sola Scriptura”.
No Oriente, embora não tenhamos esta tradição de “Sola Scriptura” pelas razões já alegadas, não temos divisões doutrinárias e não temos muitas formas de interpretação. Isto só é possível porque preservamos a Santa Tradição. Se o Espírito Santo inspirou uma redação harmoniosa dos Textos Sagrados, também sua interpretação deve ser harmoniosa, se esta provém do mesmo Espírito, pois:
“Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef. 4:4-6).
Portanto, se a peça mais preciosa do Depósito da Fé (As Santas Escrituras) são o testemunho fiel da Revelação, da mesma forma, a Santa Tradição, constitui-se na Fiel interpretação (vivência) dos Mistérios do Reino dos Céus (Mt. 13:11), posto que provém de um só e mesmo Espírito. Assim, a Bíblia é, em suma, a natureza documental da Tradição e, os atos (vivência) da Igreja no Espírito Santo, a natureza experimental da Tradição; mas, ambas as naturezas, provém de um só e mesmo Espírito. Tentar dissociar as Sagradas Escrituras da Santa Tradição, é a mesma coisa que tentar separar as naturezas humana e divina de Cristo (A Verdadeira Palavra de Deus e Fiel Testemunha), posto que elas (as Sagradas Escrituras) nada mais são do que o reflexo (ícone) do Verbo Eterno de Deus, do qual, a Igreja, coluna e baluarte da verdade (1 Tm. 3:15) é corpo indivisível.
A Igreja é maior testemunha da revelação do que a Bíblia; e embora nesta se encerre tudo o que o homem precisa saber para ser perfeito diante de Deus (2 Tm 3:16,17), foi à Igreja (e não na Bíblia) que se revelou a plenitude dos atos de Cristo. E disto testifica o Apóstolo João, o Teólogo, dizendo:
Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem. Amém. (João 21:25). Ou seja, a Igreja testemunhou muito mais coisas do que está escrito. E podemos dizer que esta experiência se perdeu? Claro que não. Elas serviram para interpretar tudo que foi dito na Lei, nos Profetas e nos Salmos e, assim, formar o texto do Novo Testamento.
- 1. A Tradição e A Preservação das Santas Escrituras
Eu tenho a absoluta certeza de que se o povo protestante conhecesse a história das muitas edições da Bíblia que são publicadas e aceitas por suas Igrejas, entrariam em crise de fé, porque os dados relativos às suas compilações os levariam a duvidar substancialmente da inspiração da Bíblia. Que dados são estes?
- Que nenhuma Bíblia, seja Ortodoxa, Romana ou Protestante, é traduzida dos originais gregos e hebraicos porque estes, simplesmente, não existem. Todas as versões da Bíblia são cópias de cópias que distam séculos dos textos originais. O texto grego mais antigo data do séc. IV e o texto hebraico mais antigo - o texto massoreta - adotado tanto por Protestantes como por Católico-Romanos, data do fim do século IX;
- Que além dos textos não serem originais, apresentam enormes divergências entre si. Por isto as muitas edições (corrigidas, revistas, atualizadas, revisadas, etc), pois a cada achado arqueológico de textos, se vêem praticamente na obrigação de avaliar o texto. Por exemplo, o texto que lhe serve de base (Mt. 1:25) em alguns manuscritos “originais” não traz a palavra primogênito. Se esta fonte for uma cópia fiel dos originais, parte das bases daqueles que dele se utilizam para dizer que Maria gerou outros filhos cai por terra.
- Que as edições Protestantes não são feitas a partir de um mesmo códice (família de textos).Quando uma editora decide publicar uma versão da Bíblia, ela também tem que definir o códice em que baseará sua edição. A maioria das Bíblias protestantes em português se baseia no “Aparato Crítico” produzido no fim do século XIX por dois eruditos britânicos, Brooke Foss Westcott e Fenton John Anthony Hort; aparato que ficou mais conhecido como Westcott-Hort, os quais abandonaram o texto bizantino e fizeram uma edição crítica baseada nos Códices Ocidentais e nos “últimos” achados arqueológicos (da época) que apontavam para textos supostamente mais antigos do que o bizantino. Esta mudança sofreu forte oposição de grupos fundamentalistas e, recentemente, os eruditos protestantes têm criticado o trabalho de Westcott-Hort por desconsiderar as inumeráveis contradições internas deste aparato, e têm defendido a volta ao texto bizantino, o qual, embora tenha redação posterior aos textos adotados por Westcott-Hort, no entanto evidenciam uma tradição bem mais antiga do que a redação deles e da dos textos de Westcott-Hort, além de uma quase perfeita harmonia interna. Assim, os editores da Bíblia King James, logo se apressam a publicar uma Nova Edição (a New King James Version), adotando novamente o texto bizantino.
- Que existem muitas dificuldades para se traduzir com precisão vários textos, ficando o sentido destes comprometido com a posição doutrinária dos editores. Temos como exemplo o célebre (entre os protestantes) “Mulher, que tenho eu contigo” de João 1:4. Literalmente, o texto grego diz: “mulher, o que a mim e a ti?” Então, retornando, assim, a Nova Versão Internacional da Bíblia (NVI) em sua edição inglesa, revisando a citada passagem, diz:
“Cara Senhora, por que você me envolve neste assunto?”E a versão espanhola da mesma Bíblia, diz:“Mulher, o que tem isto a ver comigo?”Já a versão em português, assim traduz:“Mulher, o que temos nós em comum?”
Em uma conferência promocional desta Bíblia realizada aqui em Recife, perguntei ao Dr. Luiz Sayão, um dos seus editores e palestrante do dia, o porquê desta diferença entre a versão portuguesa e a dos outros idiomas. Ele respondeu que como o texto tinha sentido incerto, eles (os editores) optaram por uma tradução coerente com as suas posições doutrinárias. Isto quer dizer que quando um leigo ler as Santas Escrituras, não imagina que além de não estar lendo uma tradução dos originais, também não pode ter certeza de que o texto reflita fielmente o que diz as cópias nas quais se baseou a edição que ele possui; ele simplesmente pode estar lendo uma adulteração do texto original, como também tomando a compreensão do seu tradutor como a expressão fiel do que a Bíblia diz. Percebemos que na base desta compreensão inocente, está uma plena confiança nos editores da Bíblia. O que no fundo é uma crença na autoridade eclesiástica para definir o texto e o seu sentido.
Diante destes dados, podemos de sã consciência, dizer que a nossa compreensão dos Textos Sagrados é o que a Bíblia diz, sem a mediação da Igreja?
Por isto, uma parte crescente dos hodiernos eruditos protestantes, vem defendendo a tese de que só os textos originais é que são inspirados, pois eles se aperceberam que defender a inspiração dos textos que se possuem, implica, necessariamente, reconhecer a Tradição como também inspirada, contrariando toda tese Protestante. Mas, eles têm sofrido oposição, pois, admitir a inspiração somente dos originais é, também, admitir a fabilidade das Bíblias que se possuem. Veja a que beco sem saída nos leva a “Sola Scriptura”.
O Evangelho de Tiago
A critica de certos eruditos ao Evangelho de Tiago não é justa e nem coerente; porque se aplicadas aos Evangelhos Canônicos a mesma medida, nem um deles subsiste. Por quê?
- Cientificamente não podemos identificar a autoria de nenhum deles. Foi a Tradição que atribuiu autoria de Mateus, Marcos, Lucas e João aos quatro Evangelhos Canônicos;
- A Crítica reconhece que cada um dos Quatro Evangelhos teve redações complementares ou adicionais aos textos originais e que refletiam disputas doutrinárias nas comunidades aos quais eles foram originalmente destinados (kümmel, Joaquim Jeremias, Culmman, C.H. Dodd e etc). Portanto, a redação final de cada um deles não pertence aos autores originais. No caso do Evangelho de Mateus, por exemplo, alguns estudiosos afirmam que a data da sua redação final se deu por volta do final do segundo século, ou seja, em data posterior ao do Evangelho de Tiago.
Este processo de uma redação posterior ou complementar de uma tradição antiga é característica de quase todos os livros do Cânon da Bíblia. O Maior exemplo disto é o Livro de Jó (que a crítica acredita ser uma redação pós-exílica de uma tradição que remonta aos tempos abraãmicos. Assim, a história de Jó é uma tradição que vinha sendo transmitida oralmente por cerca de 2.000 anos (?), a qual, somente no período pós-exílico recebe de um redator anônimo uma forma textual.
Muitas tradições em torno da vida e dos ensinamentos de Cristo foram preservadas oralmente, as quais, logo cedo se transformaram em texto. Disto dá testemunho São Lucas no prólogo de seu Evangelho. Lucas (que não foi testemunha ocular dos ditos e feitos de Jesus), relata a existência de outras redações anterior à dele, baseada na tradição (transmissão das testemunhas oculares); redações esta que também ele utilizou como fonte (Lucas 1:1-3).
Maria e Tiago, o irmão do Senhor e primeiro Bispo de Jerusalém, certamente foram muitas vezes entrevistados por líderes da Igreja e fiéis que não conheceram a Jesus fisicamente, acerca de sua infância e vida familiar etc. Todos, provavelmente, queriam saber tudo sobre Ele. Os autores destas fontes anônimas que Lucas cita dispensariam consultar a Mãe e o Irmão do Senhor? Portanto, se Tiago não é o redator final do Evangelho que leva o seu nome (assim como os autores dos Canônicos), certamente ele está na base destas tradições que depois seriam preservadas de forma textual (assim como, segundo a crítica, se deu com os Evangelhos Canônicos e quase todos os outros Textos Sagrados). Portanto, uma possível redação posterior não seria empecilho para que constasse entre os Canônicos, se isto pesasse, nenhum dos Evangelhos que temos por Canônicos poderiam ser considerados (também seus autores são textualmente anônimos. Ele, o Evangelho de Tiago, de fato, não se tornou canônico por omitir os ensinos e os eventos pascais, base do kerigma primitivo. E isto é testemunhado pela Igreja de Jerusalém, a qual existe até os dias de hoje. Esta Igreja está sob o Patriarcado de Jerusalém. O Livro de Tiago goza de grande autoridade (embora não seja canônico), não só na Igreja de Jerusalém, como de Antioquia e Alexandria. Convém lembrar que a tradição que atribui a Mateus e Marcos autoria dos Evangelhos que levam seu nome procede destas Igrejas, e são elas mesmas que testificam sobre o Livro de Tiago.
Conclusão
Quanto a Uma Base Bíblica
Um parecer histórico de cunho teológico que busque se estribar no que “a Bíblia diz” desconsiderando a mediação da Tradição, se apóia em bases muito frágeis, pois todos os dados da história da formação do Cânon Sagrado e de sua manuscritologia nos revelam ser esta uma pretensão baseada numa ilação falaciosa. Pois:
- A Bíblia que hoje temos não veio dos céus, como as Tábuas da Lei que foram dadas a Moisés ou Cristo que desceu dos Céus, mas é fruto de um longo processo histórico;
- Este processo não foi e não é consensual, pois cada Igreja possui cânon próprio que se mostra divergente em relação ao Velho Testamento, mas convergente em relação ao Novo Testamento.
- Esta convergência em relação ao Novo Testamento é fruto de uma decisão de Concílios, os quais, mediante a Tradição, arbitraram os diversos manuscritos que eram tidos como sagrados ou se apresentavam como sendo escritos por um apóstolo ou algum dos seus discípulos. A uns aprovou e a outros rejeitou, e mais uma vez a Tradição se apresenta como mediadora do texto bíblico;
- Os textos que possuímos não são os originais, mas cópias das cópias, que foram preservadas (tradição) de formas distintas e contendo discrepâncias entre si;
- Para solucionar estas discrepâncias se faz necessário o arbítrio humano, o qual é mediado por uma crença teológica (tradição);
- Para que o produto final deste labor (a Bíblia como hoje a temos) mereça credibilidade, é necessário acreditar que não somente os autores originais foram inspirados, mas também os seus copistas, os críticos que determinam quais textos refletem o original e os tradutores para poder determinar o sentido exato de termos e expressões obscuras; ou seja, é preciso crer na inspiração da Igreja.
Por tudo isto, estabelecer uma tensão entre a Santa Tradição e as Escrituras Sagradas e uma escala de valores que as distingam é provocar um falso conflito e uma valoração improcedente, fruto de uma compreensão reducionista da natureza ontológica da Igreja.
O Oriente Cristão não concebe esta tensão e a escala de valores que graça nos meios Protestantes. Para a Igreja Ortodoxa a Santa Tradição e as Sagradas Escrituras estão tão unidas entre si como a alma e o corpo, formando as duas (Tradição e Bíblia) uma unidade composta e indivisível, assim como marido e mulher, como a natureza humana e divina em Cristo. Todas elas têm como fonte a Igreja, Corpo de Cristo, a Ele unida indivisivelmente, Templo e Habitação do Espírito que a guia em toda a verdade.
Toda esta tensão e confusão teológica é fruto da “Sola Scriptura”, que não é outra coisa senão uma compreensão fragmentária (individual) da letra dos Textos Sagrados, não alcançando o espírito que os anima, posto que a este só se tenha acesso pelo Espírito que está em todos (a Igreja), age por meio de todos (o consenso da Igreja) e é sobre todos (Guia a Igreja na verdade).
Quanto Aos Irmãos de Jesus
Uma tradição (ensino) proveniente de Tiago, o Irmão do Senhor e primeiro Bispo de Jerusalém, que mais tarde tomou forma redacional em um documento conhecido como o Proto-Evangelho de Tiago, considerado como o primeiro relato evangélico, revela que José, o pai de Jesus, ao desposar Maria, era um ancião viúvo que tinha filhos do primeiro casamento, sendo um deles, Tiago. Portanto, os irmãos de Jesus mencionados nos Evangelhos Canônicos, eram na verdade, irmãos por parte de pai, não sendo eles filhos da Virgem.
Esta tradição preservada pelo Patriarcado de Jerusalém, sucessor histórico da cátedra de São Tiago, o Irmão do Senhor, e pelas Igrejas irmãs de Antioquia e Alexandria, corroboram com a teologúmena (opinião teológica, diferente de dogma), profundamente arraigada na alma da Igreja Ortodoxa como da Igreja Latina (Católica Romana), de que a Mãe do Senhor permaneceu Virgem, não tendo relações maritais com José, seu esposo, mesmo depois de dar à luz o Filho de Deus. As bases teológicas desta teologúmena, pelo fato de abordar um mistério incomum (uma virgem que concebe sem esperma humano), busca apoiar suas percepções na razão incomum e não na razão comum; por isto não está estribada em percepções de natureza sociológica, biológica e da mora sexual, como alguns erroneamente pensam, que nesta posição, se concebe as relações sexuais conjugais como sendo impuras. Portanto, não tem por base nem a razão científica e muito menos o preconceito moral.
Desta razão falarei na próxima postagem que será publicada, possivelmente, na segunda-feira, dia 1 de fevereiro.
Com atenção, fraternidade e zelo pelo Depósito da Fé,
Padre Mateus
[1] Existem pelo menos outras duas passagens em que o Evangelista Mateus utiliza a expressão “até que” como ênfase a uma realidade, mas sem delimitá-la: é o caso de Mateus 12: 18-20 onde se lê:
“Eis aqui o meu servo que escolhi, o meu amado, em quem a minha alma se compraz; porei sobre ele o meu Espírito, e anunciará aos gentios o juízo. Não contenderá, nem clamará, nem alguém ouvirá pelas ruas a sua voz; não esmagará a cana quebrada e não apagará o morrão que fumega, até que faça triunfar o juízo”. Isto quer dizer que depois que o juízo triunfar, o Messias poderá contender, gritar, e esmagar a cana quebrada? E em Mateus 20:44 lemos:
“Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés”. Podemos deduzir que após os inimigos serem vencidos o Filho não mais exercerá o Governo junto com Seu Pai?
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